segunda-feira, 21 de março de 2011

Morto

Noite escura, noite com cheiro de chuva, nenhuma estrela no céu. Parte da Terra caiu em sono profundo, todos sonham com a mesma coisa: um formigueiro soterrado a cavar desesperadamente em busca da superfície, mas, quando a alcançam, deparam-se com um deserto, tudo é vazio e apenas sopra um vento frio vindo de lugar algum, pó. Uma única árvore, há tempos morta, abre os braços ao vento para ser levada, mas o vento a recusa, puta velha. Acorda viscoso, o esperma, triste por estar vivo; caminha então pela viçosa margem do rio e faz semeaduras infecundas a propor estéril solo, sonhando sonhos impossíveis, desculpa-se por ainda respirar. Novamente cava rumo ao subsolo e se entreva.

O rio corre silencioso enquanto o cadáver de um sapo jaz à sua margem. O galho largado à vontade da correnteza tenta agarrar-se a seus irmãos ainda verdes que açoitam a água. O homem, do alto da ponte, olha o galho que passa e imagina sua condição futura. Imagina. Lateja. Os olhos vermelhos e doídos, voltados para si. Lateja um pensamento. Não pode suportar mais um segundo sequer. Não pode dar um passo adiante. Não pode ver sequer uma estrela no céu. Não sente mais o cheiro das plantas. Não tem beijo depois do sexo. Não mais aprecia o sexo. De quando era criança, não mais lembra a sensação de sugar o seio da mãe. O rio, maldito rio, havia levado tudo, e ainda há quem lhe dê um nome que justifique o sangue ser quente, e ainda há quem lhe chame de vida. Pois se lançará deste rio a outro rio que por natureza é frio, não como esse que ilude com o calor do dia e não revela que a luz que torna claro aos olhos omite algo mais, algo que faz parte, algo que se esconde sob as faces sorridentes, almas pálidas de pessoas que nas veias corre um sangue que, não, não é mais quente, é frio como as profundezas desse rio para o qual se lança.

Lá de baixo, observa-o outro cadáver, um sapo. Vê o homem apoiado nas grades da ponte e deve imaginar que ele perdeu a razão, de certo perdeu.

Da margem do rio, um cadáver observa outro, um homem que mesmo de longe fede, fede a frustração, infelicidade, o cheiro comum a todos os espécimes humanos. Olhos anfíbios definem a imagem da doença: apoiado o peito contra as grades, o homem se prepara para mergulhar no rio. Eu, sapo, sempre vivi por aqui, capturando mosquitos de felicidade que também sugavam meu sangue, hemácias de felicidade para eles, e abelhas que às vezes me davam mel e que às vezes picavam minha língua. Não sabe, o homem, que a frieza com que o rio reflete seu rosto é a mesma com que ele sempre o olhou, outro espelho, como se olhasse para si mesmo, como sempre olhou para os outros. Se acha frio lá fora, é porque não sabe que há muito habita as profundezas e que há muito ninguém o pode ver, mas não o culpo, por muitas vezes achei fria a terra e muitas vezes hibernei no fundo do rio, verdade é que voltava sempre à terra, que não me parecia menos fria, e, sem saber quando nem como, morri. Um corpo vai cair em outro rio e, muito provavelmente, sentir-se-á em casa, descobrirá que tudo é muito parecido, mas vai querer voltar, não poderá, quando menos esperar estará fazendo amor com os vermes com um perfume que causará repugnância, com um perfume que ocultará sua infelicidade. Está chovendo, muita lama ao meu redor, poucos mosquitos ainda me buscam o sangue.

A água negra forçosamente reflete um rosto que é indiferente, e que parece até mesmo tranqüilo, dissimulando a dor que sente. A chuva bate violenta em seu rosto, o peito dói contra as grades, não pode dar um passo adiante, apenas a realidade, nada mais que um pensamento latejante. Eu sou o homem, ser humano, vivente supremo da criação divina. Mas... Eu não sinto nada. É quando, sob os meus pés, racha o concreto da minha convicção, cai a ponte da minha indiferença. Então sabe-se que o sangue ainda é quente, porque cobre-lhe o corpo, lhe vê fugir das veias e se misturar à água de um rio que corre viscoso, leva seu sangue, mas não lhe leva, porque sobre seu peito pesa os restos da ponte e dos sonhos que nunca realizou. A ponte cai e me esconde, desdiz o que pensava, afogando, a vida que me sufocava então era o fio que eu sustentava, e não há terra nem água, apenas lama e esse rio que não me leva nem me cospe, apenas me espanca como filho bastardo e rejeitado enquanto sorrio e choro alucinado estendendo a mão por galhos verdes de minha existência ou botões que tenham vingado.


Daniel Ferreira (colaborador)
do livro SOB A SOMBRA DA NOITE, Fundac - 2005.

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