BESTIÁRIO
(H. Dobal)
O homem e os outros bichos que passeiam
neste campo de cinza te perseguem.
E após tantos verões sua presença
ainda se guarda em ti como na infância.
E em ti se faz antiga esta lembrança
do descuidado andar nestas veredas
de gado. Mas outra vez nos tabuleiros
de abril teu cavalim de carnaúba
estradando no ar campeia ovelhas.
Vence os campos de outrora e as miunças
soltas do seu passado te restauram
em teu tempo. Teu tempo consequente
neste imenso curral em que te amansas
triste e só campeador de lembranças.
Talvez os versos de “Bestiário” possam ser apontados como um poema-síntese da primeira parte de O Tempo Consequente, o fundamental livro de estreia do poeta piauiense H. Dobal (1927-2008), editado em 1966. Neles, encontramos mais que os títulos da obra e sua primeira parte, “Campo de cinza” [“Teu tempo consequente, neste campo de cinza”], mas a apresentação de seus principais temas. O interlocutor do poema pode ser entendido como o próprio poeta, funcionando então “Bestiário” como uma espécie de poética para “Campo de Cinza”. Ali se delimita consideravelmente grande parte da temática da referida obra.
É notório que o poeta não tenha escrito “o homem e outros bichos esquecidos”, como se referia ao final do poema imediatamente anterior, “Réquiem”, mas ao “homem e outros bichos que passeiam”, pois encontram-se, neste momento, povoando as lembranças de um “menino crescido” que em si restaura um tempo consequente. Um ambiente idílico se reconstrói, justaposto à miséria que os versos iniciais inferem ao, inevitavelmente, evocar o já mencionado poema “Réquiem”. Um menino que campeia nuvens [ovelhas] em um cavalinho de carnaúba. Mesmo quando permeia o onírico, Dobal mantém a inconfundível e admirável rusticidade que retransforma a lembrança-sonho do “menino crescido”, em que se campeia ovelhas pelo céu em um menino que olha para as nuvens, naquele abril, breve intervalo dos verões, dos outubros, onde jaz o homem [e outros bichos], como se o sonho, o céu, [este imenso curral] lhe amansasse, como se ali existissem as “lendas tramadas pelo inverno” a que refere o poema “Campo Maior”. Porém, as nuvens não são mais que lembranças, estas que no Piauí, costumam ser passageiras e poucas águas trazem.
Uma definição para o eu lírico dobalino: triste e só, somente um campeador de lembranças, estas que tresmalharam num campo bem maior que os tabuleiros de carnaubais, o próprio tempo que reduz tudo a cinzas, revelando a existência minguada de um ser esfacelado que busca sobreviver, e nisso não difere de nenhum outro bicho que habita essas chapadas corcoveadas de cupins, onde o capim agreste não dá sustança e o gado magro mal se mantém. Uma simbiose homem-bicho, zoomorfização típica desta primeira parte de O Tempo Consequente, apresenta-se desde o título do poema em questão: “Bestiário”.
A estrutura de “Bestiário” assemelha-se a um soneto recomposto. Um possível segundo quarteto funde-se a um possível primeiro terceto, numa única estrofe de 7 versos. Na poética dobalina, a apropriação muito particular de formas poéticas tradicionais, ganhando em sua obra uma feição própria, é um aspecto observável em diversos poemas, como “Introdução e Rondó sem Capricho”, no qual Dobal utiliza dois padrões de uma forma poética, o rondó português e o rondó francês, reestruturando assim os dois modelos em um só. Se o poeta buscou realizar alguma correlação com a estrutura típica do soneto italiano permanecerá matéria obscura, mas é curioso que “Réquiem”, apresente justamente 14 versos divididos em três estrofes de 4, 7 e 3 versos, predominantemente decassílabos, e que as licenças poéticas sejam encontradas apenas em 3 versos da estrofe que, em teoria, estaria reunindo o segundo quarteto com o primeiro terceto da configuração tradicional de um soneto.
Mas o que seria esse Bestiário de H. Dobal? Remetendo aos mosteiros da idade média, Bestiário é um tipo de literatura descritiva do mundo animal acompanhado de mensagens moralizadoras, reunindo informações sobre animais reais e fantásticos. Entretanto, a significação óbvia seria associar bestiário a besta, animal de carga, de onde teríamos o adjetivo bestial. Porém, a leitura de poesia sempre nos permite alguma fuga. Estilisticamente, é um recurso típico de Dobal a justaposição de termos, como se substituíssem um ao outro ou se fundissem em uma única ideia a ser expressa por elementos que não estariam necessariamente correlacionados, mas quando evocados lado a lado, causam estranhamento, situação tão cara à poesia, tanto sintática quanto semanticamente. Nisso reside boa parte da dicção própria do poeta. Então, poderia um antigo Bestiário monástico transfigurar-se agora no catálogo desses bichos esquecidos, incluindo sobretudo o homem, evocados agora nos verbetes das lembranças campeadas em um imenso curral onde te amansas?
[publicado no Jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 19 de outubro de 2010]
Adriano Lobão Aragão (colaborador)
Ágora da Taba
adrianolobao.blogspot.com
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