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terça-feira, 28 de setembro de 2010

Elio Ferreira ---- O Poeta Canibal

Entrevista concedida a Demetrios Galvão e Thiago E


1- Elio, como a poesia começou a se manifestar no teu corpo? Relata tua iniciação.

Não sei muito bem, quando a poesia começou de verdade. A gente nunca sabe de fato quando ela, a poesia, acontece na nossa vida ou se a gente já nasce com ela ou se alguma coisa fez com que a poesia acontecesse. Sei que dei por mim me sentindo fascinado, encantado e mesmo sentido medo das histórias de “assombrações dos contos orais e narrativas maravilhosas que me contaram na minha infância.

Lembro que quando tinha talvez oito anos escrevia alguma coisa parecido com poema, que lembro até hoje, a partir de uma figurinha de chiclete:

Tucano, tucano
tu ingole um homem?
Ingulo, ingulo até você,
quando você quiser morrer
pode vir,
pode vir,
onde estou eu...

Estranho, não? Quando era menino, eu gostava de ler poesia balançando a rede com uma das minhas irmãs. Depois comecei a recitar poesia na escola, na sala de aula. Aos 17 comecei a recitar meus próprios poemas nos eventos da escola. Aos 18, comecei a publicá-los num jornal semanário de Floriano – Piauí, minha cidade natal.

2- Desse teu início, o que ainda contribui na construção da tua escrita? De onde vem o teu impulso pra escrever?

Desde que publiquei o Canto sem viola, em 1983, eu já me tornara um poeta que escrevia poemas narrativos longos e de memórias da infância. Tinha aquela vontade de perpetuar as pessoas simples, as pessoas comuns da minha infância. Também escrevia sobre meu presente, as minhas experiências pessoais, poesias sociais, poesias eróticas, etc. Acho que o primeiro livro é o prelúdio de muita coisa que a gente faz e como faz nos livros seguintes.

Não sei muito bem de onde vem o impulso. Sei que vem. Antes escrevia até tarde da noite. Virava a noite. Agora escrevo mais poesia de manhã, cedinho.

3- Dos teus livros, o que mais vemos reverberar é O Contra-lei. Em que ocasião tu o escreveu? E em que medida a situação cultural e política que te circundava motivou a feitura dos textos?

O Contra-lei foi publicado em duas edições. A primeira é de 1994, é a reunião de três livros: o poemartelos, o contra-lei e outros metais; a segunda é de 1997, quando acrescentei mais um livro, um quarto livro: Eldorado dos Carajás.

Este livro foi escrito entre 1990 a 1994, quando comecei a fazer minhas performances de rua com a cara pintada, a capa preta, o parangolé da bandeira do Brasil e o megafone pelas ruas de Teresina. Foi na época do governo Collor de Melo, das manifestações de rua, da crise política brasileira; da Guerra do Kuaite, etc. Vivi intensamente todos esses momentos políticos e sociais. Falava poesia na manifestações de rua. Falava poesia com megafone nos pontos estratégicos de Teresina, nas universidades, escolas, praças, bares. Viajei por outras cidades do Piauí e do Brasil, como Brasília, Campo Grande, Fortaleza, Aracaju, São Luís, Floriano, Caxias, etc.

Nesta época me sentia meio sufocado. Escrevia compulsivamente, queria falar meus poemas, mudar o mundo, interferir no mundo. Havia na época havia um baixo astral de extermínio dos meninos de rua pela polícia. Daí foi que veio “Abracadabra” um dos poema que mexia muito com as pessoas; teve o “canibal”; “o contra-lei III;. Na época fiz camisas com poemas, que tiveram uma boa recepção.

O contra-lei foi um poema do aqui-e-agora. Um poema muito próximo da música, de linguagem simples, que agradava e ainda agrada as crianças e os jovens e assustava os adultos.

Muitos dos poemas do Contra-lei foram musicados, quando montei uma banda, primeiro de pop rock e depois de hip hop, esta com o cantor Gomes Brasil, com este nos anos 1995 a 1998.

4- Que impacto as performances do O Contra Lei causou, tendo em vista que tu saia pela cidade com a cara pintada, de capa e megafone...? Berrando uma poesia que não se prendia ao livro e nem a um palco fixo, como as pessoas reagiam?

Quando escrevi O contra-lei, pensei numa forma de dar uma sacudida nas pessoas. Naquele momento me sentia um cavalo. Pintava a cara e aquilo me dava uma força muito grande, era como se eu me sentisse uma antena do mundo falando de energia solar, abominando a corrupção política do Brasil e a violência policial contra as crianças de rua e extraterrestres que pousavam numa nave movida a energia solar pra salvar as crianças perseguida por grupos de extermínio. Foi um momento muito intenso. Algo inexplicável de performances radicais. Alguma coisa de estranho me movia numa velocidade Eu acho que eu estava caminhando para o fim. Não sei...

As pessoas interagiam com as performances. Eu improvisava na hora a partir dos poemas já elaborados. Algumas se sentiam ameaçadas ou agredidas. Chamavam a polícia o caso de uma escola de religiosos do centro de Teresina, quando no roteiro de performances para a fotografia do livro, passei pela Av. Frei Serafim falando poesia no megafone e parei defronte prédios históricos. Houve circunstância em que fui ameaçado de agressão e prometi reagir à agressão. Felizmente ficou apenas na ameaça.

O fato é que a maioria das pessoas gostavam, interagiam, participavam, se identificavam com meus poemas. Eu também falava poema nas rádios, na TV, nos bares, teatros, universidades, estação de metrôs, rodoviária, parques de diversão, igrejas, etc..

5- E como foi a repercussão do O Contra Lei? Faz um paralelo de como ele foi recebido pelo público e por outros poetas...

Fiquei surpreendido com toda repercussão. Eu não tinha idéia de que era capaz a poesia. Levei muitas vaias. Mas fui mais aplaudido do que vaiado. Em Fortaleza, no Bar Woodstock levei uma grande vaia com declamei o poema “O contra-lei falando sobre Deus”; em Caxias, numa festa de forró, também levamos e minha banda de pop a maior vaia quando falei “O contra-lei falando dos políticos, generais...”, conhecida com “O canibal”. Por três vezes, em Brasília e Teresina, uns policiais tentaram me coibir, mas consegui apaziguar a situação.

Quanto aos poetas para mim foi um enigma, mas os poetas, em geral, são muitos solidários uns com os outros. Acho isso muito legal. Talvez porque não somos e tampouco jamais seremos uma espécie em extinção.

O fato é que fazer uma poesia que servisse pra tudo inclusive pra dançar, pra protestar, pra identidade, pra devaneio, pra assunção da minha origem negra, invocar os meus ancestrais, etc. Não sei bem o limite ou deslimite da poesia.

6- Quais os autores de tua preferência? Aqueles usados pra construir teu universo poético.

Foram muitos. Li uma porrada que nem gosto de citar. Fui um leitor compulsivo de poesia. Li os clássicos e meus contemporâneos. Não tenho restrições, quando se trata de poesia. Mas hoje quero me reencontrar com as minhas origens negra e popular, com as narrativas e canções da minha infância. Quando atingir isso plenamente, acho que voltei a mim mesmo, à casa da poesia, à casa dos meus pais, à minha rua, ao meu bairro, à sabedoria do povo e da minha casa, etc.

7- Elio, como tu pensa tua poesia: marginal? étnica? contemporânea? ...ou marcaria aquela última classificação “outros”? Pra ti, essas classificações fazem sentido?

Tudo faz sentido neste mundo, nesta vida. Um poeta precisa andar por vários caminhos. Acreditar na sua poesia, acreditar na sua geração. Pensar que sua poesia é capaz de mudar o mundo, pelo menos enquanto se é jovem. Gostaria de ser sempre esta coisa de ser jovem e antigo. É legal este diálogo. Esta doideira. Sou um capoeirista. Sou graduado do Abadá-Capoeira. Um corda azul. E isso deu um grau a poesia e mais coragem e determinação pra enfrentar a rua e está disposto a testar meus limites e saber dos meus limites. Tudo na poesia é válido, menos morrer pela poesia ou por qualquer outra coisa.

8- Por falar em classificação, diz uma coisa: quais características tu percebe que atravessam a poesia dos autores negros? Em que sentido podemos falar em “poesia negra”?

Esta poesia negra é o grande lance. Mas cada poeta é cada poeta. Esta poesia negra faz a gente descer dentro da gente mesmo, da nossa família, do nosso passado, da nossa infância e nossos parentes, da nossa história, do nosso tempo, da nossa casa, daquela coisa que estava pra desaparecer e a gente entra dentro dela de maneira mais pelas entranhas, mais humanizado, se auto-reconhecendo nas pessoas e nas coisas simples da vida. É um redescobrir da vida e da gente mesmo.

A poesia negra é algo que já estava muito dentro de mim. Do ponto de vista estético, O contra-lei e o Poemartelos têm muito de poesia negra, sobretudo da poesia buscando a música e das narrativas orais, da evocação dos Orixás, sobretudo de Oguem e das vozes das pessoas negras da minha infância, da memória dos meus parentes que cruzam e entrecruzam os versos dos meus poemas.

De modo específico, América Negra seria o livro de poemas negros ou afro-brasileiros de modo mais específico, por tratar de temáticas relacionadas à história, à memória, às utopias, à condição humana dos afrodescendentes. São poemas classificados como afrodescendntes pela crítica dos leitores e críticos dos Cadernos Negros, este principal veículo de editoração e divulgação da Literatura Afro-Brasileira hoje.

9- Qual tua relação com o movimento negro? Como avalia as ações do movimento aqui em Teresina?

Comecei minha militância no Movimento Negro Unificado em 1984, em Brasília. Hoje tenho sido convidado para participar de eventos culturais nacionais e internacionais em cidades como São Paulo, Salvador, Recife, etc. Mas minha maior ligação hoje é com a literatura e a pesquisa literária através de palestras, conferência, organização, coordenação de eventos, publicação de artigos em revistas acadêmicas sobre literatura afrodescendente, publicação de poemas nos Cadernos Negros, além de orientações de pesquisas para alunos de graduação e mestrado na UESPI e na UFPI, como também projetos de pesquisa de literatura e culturas negras.

10 - Elio, o que tem a dizer sobre as cotas para negros nas universidades?

Isto é uma questão de humanidade, de reconhecimento da dívida histórica que o Brasil tem para com os descendentes de africanos ou negros brasileiros. Nada mais é irracional do que negar esta obrigação. Sou a favor. Inclusive faço parte da Comissão da UESPI que instituiu cotas para negros nessa Universidade. Escrevi um dos textos que deu sustentação à aprovação de 15% dos 30% de cotas para a escola pública.Quebrei o pau. Felizmente os representantes do Legislativo do Piauí foram a favor. Isso foi um grande avanço, embora poucas pessoas do Piauí se toquem para isso.

11- Falam muito sobre a Roda de Poesia e Tambores: o começo, as dificuldades, que momento te marcou positivamente...

Quando vi aquela molecada falando poesia. Escrevendo cada dia, cada roda de poesia novos poemas para participar dos concursos de poesia falada e escrita... Aquele entusiasmo da nova geração de poetas se encontrando com gerações posteriores, acadêmicos. Quando vi surgir novos poetas que aprendiam com os mais experientes e esses jovens criando uma atmosfera de ânimo e criatividade aos veteranos. O contato dos jovens com os mais experientes foi muito salutar. Senti que dali, na Roda de Poesia & Tambores, iria surgir muita gente boa, que iria fortalecer a poesia do Piauí e fortalecer a poesia, cria novas perspectivas na poesia de hoje. Estávamos fomentando a criação de outros grupos, de músicos-poetas que formaram ou passaram a integrar bandas de música pop, etc.

12- Na tua opinião, que ressonâncias a Roda de Poesia e Tambores produz no cenário cultural daqui? Isso porque com a criação da Roda, a poesia passou a ocupar, em Teresina, um espaço público e aberto a todos aqueles que queiram falar e divulgar sua poesia. Como tu percebe a aproximação dos poetas, “novos” e “antigos”, a partir desse evento mensal que é ponto de encontro da poesia em nossa cidade?

Antes de tudo, precisamos retomar e continuar incentivando os poetas jovens e fomentando esse diálogo entre diferentes gerações. Os dois ganham muito com isso. Acho que as coisas nunca estão acabadas ou perfeitas, que é sempre possível ou necessário recomeçar. Refazer caminhos, fazer travessias, ultrapassar fronteiras. Penso que tudo está por fazer, pelo meio do caminho. Isso me tortura muito. É preciso que surjam novas pessoas pra dar continuidade a projetos como esse. Inclusive vocês estão fazendo isso. Vocês da Tarja. É isso mesmo. É preciso que a rapaziada nova e os veteranos estejam juntos para um aprender com o outro. A poesia é um aprender constante. Um renovar sem rumos, um revitalizar de corações e de olhares para o mundo e para dentro da gente mesmo. O Piauí é um Estado pobre e tornará tanto mais pobre à medida em que não der importância a seus escritores, poetas e artistas. Do ponto de vista da valoração da cultura literária dos jovens, sobretudo em relação às políticas públicas, o Piauí é uma pobreza sem fim, de descaso à política cultural voltada para os jovens. Já disse isso muitas vezes. Já estou de saco-cheio com isso. Quando chega nesta época da politicagem, desta sujeira que virou profissão, tudo deixa de existir. Não quero dizer que todos políticos sejam corruptos. Não bem isso. Mas a grande maioria está mais afim de se dá bem juntamente com os familiares, parentes. Parece que estamos descendo para um lugar chamado - o fogo dos infernos. Os recursos dos projetos já aprovados são amarrados e somos impedidos de honrar os nossos compromissos.

Por falar em ressonâncias, a Roda de Poesia & Tambores completa dez anos em outubro e lançaremos a Revista Literária da RODA DE POESIA & TAMBORES, Nº 2, em dezembro próximo.
Revista literária Roda de Poesia e Tambores nº 1

13 - Voltando à tua poesia: em entrevista à revista Amálgama, em 2002, tu disse “eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira... música de vários tipos”. Ainda é assim? Tem algum caso em que algo da música que ouviu foi aproveitado na tua escrita? Cita alguns casos específicos.

Gosto de escrever ouvindo música sobretudo jazz. Este reencontro com a música e as narrativas orais me reaproxima dos meus ancestrais negros, da minha infância, quando meu pai contava histórias pra mim, minhas tias me embalavam cantando canções de tempos imemoráveis, quando ouvia os contos maravilhosos contados por pessoas mais velhas na porta da minha casa, na Rua do Ouro, em Floriano, nas noites de lua ou nas noites escuras, sentados na calçada da minha casa. Eu sempre fui obcecado por essas narrativas e mais tarde, na adolescência, na juventude e até hoje esta minha obsessão foi transferida para os livros.

14- O que dizem a teu respeito que te deixa chateado?

Sabe, eu nem sei ou nunca me preocupei com o que dizem de mi. Nesse sentido, sou meio distraído.

15- Elio, tu já cometeu algum pecado cultural?

Eu acho que não, porque não sei que pecado é esse. Não entendo dessas coisas. Não acredito em pecados. De pecado só ouvi falar dos Sete pecados capitais.

16- E ainda no âmbito da cultura: que mentira tu gostaria que fosse verdade?

Que toda pessoa pudesse comprar livros e todos poetas pudessem publicar seus livros na hora que lhe desse na teia.
AXÉ! Um beijão e muita poesia para todos!
Pra vocês da Tarja.

sábado, 19 de junho de 2010

"poeta bom é poeta morto" -- os Oníricos entrevistam Nicolas Behr

Entrevista Concedida a Thiago E.

Na manhã do dia 3 de junho, o poeta Nicolas Behr participou do 8º Salão do Livro do Piauí – Salipi – com a palestra “A poesia é necessária?”. Em um papo livre e interativo, o poeta distribuiu poemas, vendeu livros, falou um pouco sobre sua vida e a poesia que o instiga. Porém, antes da sua fala no Theatro 4 de Setembro, tive a oportunidade de lhe entrevistar durante os 20 minutos que faltavam. Agradeço aos professores Feliciano Bezerra (Fifi) e à Jasmine Malta por terem me ajudado a encontrar o poeta. Resolvi mirar minhas perguntas em torno do seu controverso livro Umbigo, pois, nele, Behr dialoga com a literatura brasileira, cita muitos autores, critica, se exibe, copia, elogia, parafraseia e, sobretudo, provoca o leitor nas suas mais de 80 páginas.

Thiago E



Nicolas Behr – [manuseando o livro Umbigo] Esse aqui é o meu pior e o meu melhor livro... Ele tem uma coisa engraçada. Eu vou à Faculdade e falo Caraca! ...como que ainda choca o “cofrinho”.

Fifi – Jura, cara?!

Nicolas Behr – É. Em pleno 2010 ainda tem isso. Nós estamos em 2010, gente! É um “cofrinho”... Esse livro eu fiz em uma semana.

Thiago E – Eu o comprei em Brasília.

Nicolas Behr – Cê andou lá?

Thiago E – Minha banda, a Validuaté, foi tocar lá e...

Nicolas Behr – “Vaedouté”?

Thiago E – Va-li-du-a-té: vem daquelas expressões de rótulo “válido-até janeiro de não sei de quê...”

Nicolas Behr – Ah! Validuaté. Entendi.

Thiago E – É. A gente juntou e escreveu como se fala: com “i” e com “u”. Numa palavra só. Fomos fazer um show pra divulgar a banda.

Nicolas Behr – Foi no Nação Piauí?

Thiago E – Nação Piauí, exatamente!

Nicolas Behr – Eu sempre vou lá na Nação Piauí, mas não sei onde eu tava... No CONIC, né?

Thiago E – Tocamos em alguns lugares: naquele prédio Brasil21 e em um bar que eu nem sei onde é chamado Rayuela.

Nicolas Behr – Rayuela, 412, Sul.

Thiago E – Pois pronto. Foi lá que tinha o livro. Era um show só pra divulgação. A gente ía ganhar quase nada. Eu acabei ganhando acho que R$ 30,00... cada músico. Aí eu comprei teu livro (risos)... mais outro do Ferreira Gullar. Porque eu tinha lido no Peregrino do Estranho que tu tinha dito: “o Umbigo é o meu melhor livro”. Rapaz, pois tenho que ler.

Nicolas Behr – O melhor e o pior, né?

Thiago E – Eu li até marcando os versos mais...

Nicolas Behr – Ah, não! Esse aqui não tem autógrafo ainda não. Tem que ter autógrafo.

Thiago E – É, esse aqui ainda não tem autógrafo.

Nicolas Behr – É “thiago” com “th”?

Thiago E – É. Aí eu fui lendo, me diverti à beça.

Nicolas Behr – Esse livro eu fiz em uma semana, cara. Eu fiquei doido quando terminei. Eu não queria terminar. Eu ía fazer até o volume 2, mas aí ía ficar besta. O único livro que eu escrevi num fluxo... porque é muito difícil aparecer esse momento. Vendo televisão, no banheiro, no banco, vendo televisão com meu filho – jogo de futebol, sei lá, qualquer coisa...

Thiago E – Visitei teu site pouco tempo depois que eu tinha comprado o livro e tu já tinha acrescentado alguns versos “minha poesia pode ser Antônio, pode ser Fagundes, pode ser Arnaldo, pode ser Antunes” (risos).

Nicolas Behr – Eu mostrei pro Arnaldo... Mostrei isso pra ele uma vez...

Thiago E – Ele disse o quê?

Nicolas Behr – Ele achou legal. Foi numa peça em Brasília. Eu gosto dele. O Antunes é gente boa... É “thiago” com “th”?

Thiago E – Hum rum.

Nicolas Behr – Você quer publicar isso onde?

Thiago E – Eu faço parte de um grupo de poesia e temos um blog chamado Poesia Tarja Preta. Queria ver se tu pode me dar uma palavrinha pra pôr no blog.

Nicolas Behr – Vamo lá!

Thiago E – Quando tu começou a escrever? A poesia chegou ou tu foi até ela?

Nicolas Behr – Quando eu era criança, na escola eu via certas coisas, entre aspas, “erradas”. Falava pra professora “ih, professora, tá errado aqui”. E a professora falava assim “olha, isso é licença poética”. Aí eu falava “é, mesmo? eu vi isso aqui e não tá certo”!!! Ela falava “é licença poética”. Eu acho que isso que me levou, dez anos depois, oito anos depois – a escrever poesia... em Brasília... porque isso foi em Cuiabá. Em Brasília eu comecei a escrever porque Brasília é uma cidade muito estranha, né? Uma cidade diferente. Então a minha resposta pro impacto que Brasília me causou foi a poesia. Eu tentei ser guitarrista de rock’n roll, mas não sei tocar guitarra. Todo jovem quer ser pop star, né? Isso com 15 ou 16 anos. Aí eu comecei a escrever. Eu já lia bastante poesia.

Thiago E – Lia o quê?

Nicolas Behr – Ah! Eu lia tudo. Lia muito Drummond, 26 Poetas Hoje, Leminski, Chacal... depois fui conhecendo mais... Lia muito Pessoa, gostava muito de João Cabral.

Thiago E – Que ano era esse?

Nicolas Behr – 76. 75 a 76. Aí, em 77, eu lancei meu primeiro livrinho mimeografado Iogurte com Farinha. Viajei com esse livro, vim aqui ao Piauí em abril de 78, eu tinha 19 anos. Eu lembro bem. Passei aqui uma semana vendendo o livrinho em bar, dando entrevista, indo em colégio. Vendia a 1 real, 2 reais. Hoje ele não valeria mais que 3 reais, um livrinho desse. Era bem baratinho. E era bom. Fomos a Timon, tomamos banho pelado no Parnaíba... Rubervam Du Nascimento... essa turma. Era uma coisa revolucionária, na época. Era novidade o poeta vender livro, o poeta se apresentar. A turma da geração mimeógrafo trabalhou muito na coisa da desmistificação, o poeta como um ser superior, ou um ser distante, de outro planeta, um ser intocável. Esse academicismo que ainda temos bem forte. Mas o próprio poeta às vezes contribui pra isso. Auto-mistificação, sabe? Então, eu gosto muito de quebrar essa coisa porque isso distancia as pessoas do poeta, da poesia.

clicar na imagem
do site http://www.nicolasbehr.com.br/

Thiago E – Behr, o que geralmente falam a teu respeito que te deixa chateado?

Nicolas Behr – Ah! Que eu sou um poeta sem rigor, que eu sou um cara esculhambado. Não, cara!

Thiago E – E onde tá o teu rigor?

Nicolas Behr – O rigor tá no não-rigor. Pra chegar no não-rigor, rapaz, é um rigor muito grande. As pessoas confundem o simples com o superficial. O simples é muito difícil. É mais fácil complicar. Mas eu entendo que as pessoas passando a primeira vista assim, né? Porque a poesia tá muito ligada ao hermético. E não! Eu acho que o grande poeta é simples, com profundidade, e eu tento trabalhar muito o humor. O humor é o espalhante-adesivo, é o que faz o poema aderir na pessoa e já cola. A cola do poema é o humor, a ironia, facilita o pregar na memória.

Thiago E – Por isso eu tava te falando: quando eu li o Umbigo eu não queria parar por causa disso. Por exemplo, tu dizia “minha poesia – os jasmins da palavra jamais. Ei, mas isso é de Murilo Mendes... Ah! então é minha poesia também” (risos).

Nicolas Behr – Esse livro é uma reciclagem.

Thiago E – Tinha uma hora também que tu dizia “minha poesia suporta o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”.

Nicolas Behr – hã rã!

Thiago E – Eu: “caralho, que verso bonito”! Em seguida tinha “minha poesia queria tanto ter escrito a linha aí de cima, mas foi Drummond que escreveu” (risos).

Nicolas Behr – É. Ali tem um diálogo, tem uma conversa. Esse livro é interessante porque ele testa os limites do narcisismo e muita gente não entende isso.

Thiago E – Te acham até pedante...

Nicolas Behr – É verdade. Mas eu falo “minha poesia é pedante, mas você continua lendo... porra!” (risos). Eu não vou reescrever, se não vai ter o volume 2... Uma coisa que é uma limonada forte acaba virando uma coisa aguada... É um livro que eu gostei de escrever porque fiquei imaginando: se um Drummond, um Manuel Bandeira tivesse a liberdade de escrever um desse, o que não sairia? O que seria um Drummond e um Bandeira escrever um livro como o Umbigo “minha poesia...” Encher 80 páginas e se dar a liberdade de se permitir brincar com o narcisismo, brincar com o leitor, brincar consigo mesmo, sacanear com esse negócio de “minha poesia é de primeira linha...”, “minha poesia não é de segunda”, “às vezes, minha poesia é terceira categoria”. Auto-esculhambação é uma coisa da nossa geração. Auto-esculhambação é uma coisa muito nossa. Não é auto-flagelação!

Thiago E – É quando você ri de si.

Nicolas Behr – Isso aí já impede de muita porrada, também. É um muro que você coloca. É um escudo. O cara vai te bater... “peraí, eu já me bati”!

Thiago E – Ainda no Umbigo: “minha poesia escala o time: Drummond e Bandeira contra Rimbaud e Ezra Pound. Vai ser moleza”. Isso é uma rejeição ao Rimbaud, ao Pound?

Nicolas Behr – Os brasileiros às vezes não são tão valorizados. Rimbaud é o poeta dos poetas, tá lá no Olimpo, né? Mas eu gosto mais do Drummond! O Drummond é mais porrada! Eu acho... muito mais. O mal-estar que o Drummond me causa, o Rimbaud não me causa. É o grande poeta das imagens pápápá. É uma unanimidade. Falar mal do Rimbaud é uma coisa... Ninguém chegou tão longe nas imagens... que ele criou. Tudo bem. Mas eu gosto mais dessa coisa pé no chão. O Drummond é aquela coisa mais agreste. A poesia do Drummond te machuca mais. A do Rimbaud não. A do Drummond é mais ferina, te corta, arranca pedaço. O Rimbaud não arranca pedaço... Mas é provocação. É tudo provocação.

Thiago E – Pois é. Eu pensei: o Ezra Pound foi um dos poetas que apareceram pelos irmãos Campos e tal, e no Umbigo tem “minha poesia até hoje espera um elogio dos irmãos campos... sentada”.

Nicolas Behr – É pura provocação. O concretismo fez coisas boas. Cada poeta, cada movimento que chega tem uma proposta. E os outros que chegam aproveitam o que tem. Os concretistas foram caros em muita coisa que não havia antes: o espaço branco na página! Um elemento novo. A gente viu o espaço em branco da página e “Opa!”.

Thiago E – O branco sendo silêncio também...

Nicolas Behr – É... uma coisa que ninguém tinha sacado. O Manoel de Barros chega e põe o inútil, a inutilidade das coisas. E o João Cabral aquela coisa do agreste... Aí a poesia mais nova retomando o Oswald, mamou no Oswald. É sempre um retomar porque a tradição é feita de rejeições. A tradição é alimentada pela tentativa de quebrar a tradição. Eu vejo isso bem. Só que eu não vou virar aquilo que sempre condenei. Eu, hoje, já tenho tese, mestrado, sou chamado aqui e sou quase um veterano, a gurizada me chama de tio (risos)... Aquela coisa do beletrismo, academicismo, né? Você acaba virando uma referência, assim. Mas isso aí é tranqüilo trabalhar.

“um dia, fui numa escola falar pra gurizada sobre poesia e um aluno disse assim: ‘Professora, isso aí não é poesia não... Eu entendi tudo!”
Thiago E – Behr, como tu recebe essas críticas que os poetas da geração 70 não leram muito, não lêem... como tu vê isso?

Nicolas Behr – Poeta não gosta muito de ler, poeta quer mais é escrever. Mas eu acho que é bom ler! O pessoal me perguntou uma vez “como poeta, qual o conselho que você daria”? Eu falei assim “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever. Rasgar, rasgar, rasgar”. Aí eu fui num colégio e falei isso “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever. Rasgar, rasgar, rasgar”. Aí o menininho falou assim “Não tio. É deletar, deletar, deletar” (risos). A gente usou uma coisa interessante que foi a influência não literária, sabe? Uma influência que foi da leitura, obviamente, mas também do vídeo game, do vídeo clipe, do rock, da MPB, das letras. Teve várias influências ou confluências, como diria o Mário Quintana, fora do ambiente literário. Eu acho que leu, mas o tempo não pára, é uma outra geração. Leu assim: sei quem foi Camões e Os Lusíadas. Se você me perguntar se eu li tudo, não li. Já li o começo, já folheei e tal... sei do que se trata. Dizem que você só pode romper com a tradição conhecendo a tradição. Mas hoje a velocidade da informação é tão grande que não dá pra conhecer ela toda. Dá pra ter uma idéia. O tempo é muito rápido, cada vez mais rápido. Agora com internet então a coisa tá com uma velocidade estonteante. Eu sempre falo nos colégio “gente, vai ao Orkut, na comunidade do Fernando Pessoa...”.

Thiago E – Aí já dá uma luz nova.

Nicolas Behr – É, a linguagem é essa: “vai no Orkut... começa pelo Orkut... mas você não vai ficar só no Orkut, não!” É um começo, né?

Thiago E – É mesmo. Eu sou professor de língua portuguesa, redação, literatura... e sempre que vou dar um exemplo eu também levo pra esse mundo deles “no MSN a gente escreve desse jeito. Isso aqui vem disso... ôba!” Quando eu falo MSN, a turma já fica em silêncio.

Nicolas Behr – A turma “Professor... tem Orkut”! Bacana.

Thiago E – Te perguntei sobre “a crítica de não ter lido muito” porque o Leminski tem um poema em que ele já responde isso.

[telefone toca] Nicolas Behr – Oi, oi! ... bom dia. ...Ôba, tudo bom, minha amiga... não... mas pode falar. to longe. to no Piauí, pode falar........... hum......... hã rã....... você tá pela pista....... você sabe onde é aquele ferro velho barbosa, lá em cima..... sabe? depois do São Cristóvão... é melhor você ir lá. Depois do ferro velho Barbosa tem uma pista que desce... chega lá em baixo tem o quê? ........... vai reto. é uma pista larga. Na hora que chegar lá embaixo, vire à direita, segunda chácara. Tá bom? é fácil. tá bom. Valeu. Beijo. Tchau.

Nicolas Behr – Então o Leminski responde com um poema...

Thiago E – Ele diz “poeta marginal / é quem escreve na entre linha / sem nunca saber direito / quem veio primeiro / o ovo ou a galinha”.

Nicolas Behr – É.

Thiago E – Tu também fala “minha poesia é a poesia experimental de um poeta não-experimental”. E quem fala sobre isso é o Piva, quando ele diz “eu só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”.

Nicolas Behr – Tem umas coisas aí que são uns conflitos. Por exemplo, o Torquato diz que “um poeta não se faz com versos”. Isso foi muito marcante pra gente. A gente colocou dentro do poema uma coisa que não vai permanecer: a atitude do poeta. Mas isso não vai permanecer porque, daqui a cem anos, vai ficar o que tá escrito. Meu lema é “vale o que tá escrito”. O Piva tem lá a vida experimental dele e tal, mas o que vai ficar não é a vida experimental do Piva, é o texto escrito, sabe? Isso aí é mais outra provocação.

Thiago E – Eu te perguntaria mais coisas, mas tu já vai falar. Me diz: o século XXII te dará razão?

Nicolas Behr – Olha, nós somos todos póstumos. É um consolo. Nosso consolo é esse. A gente vive nessa ilusão e essa ilusão faz a gente viver: nós somos todos póstumos e a melhor coisa que pode acontecer com o poeta é morrer. Poeta bom é poeta morto. Então: republicado, antologia, nome de rua, nome de escola. Essa ilusão alivia e consola. Ela é um combustível. A pessoa viver é ir ali na esquina e voltar. Tudo pra gente é mais difícil. A poesia dá uma leveza, é uma bengala psíquica pra seguir em frente, tocar sua vida, mas essa ilusão é importante. Na verdade não é uma ilusão, é uma fantasia. Fantasia de que a gente vai ter reconhecimento futuro, de não sei o quê. Mesmo que não tenha. Mas a gente alimenta tudo. Essa ilusão é boa. Eu acho que ela faz parte. Tem um poema meu sobre a vida em 2070: “estaremos todos mortos / estaremos todos errados”.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Intercambiando Idéias - Os Oníricos Entrevistam Rubervam Du Nascimento


Entrevista concedida a
Demetrios Galvão e Luiz Valadares Filho

Luiz Valadares Filho 1- O teu nome “Du Nascimento” tem algo de afrancesado? Nos fale um pouco a respeito disso.

Rubervam Du Nascimento: Du é um jogo sonoro inventado a partir do modo como pronunciamos as palavras. Nunca ouvi ninguém dizer por aqui “do”. Do é outra coisa que ao ser pronunciado ganha um acento que não existe, um acento imaginário que o empurra para outro significado. Du acompanha a voz de Ru do início do meu nome. Uma homenagem, digamos, ao som produzido pela voz de nossas letras e palavras. Nada a ver com o francês. Du é um dado a mais que contribui para a possível decifração dos enigmas que cercam a minha poesia. Funciona como uma espécie de anagrama. Du é de um atrevimento sem tamanho. Com ele posso provocar Deus. Du também vem de Deus. Basta excluir duas letras. Com o Du me coloco ao lado da criatura divina embriagada de sopro de fogo e me transformo em criador. Afinal de contas é por demais inquietante quando o extraordinário poeta chileno Vicente Uidobro escreve que “ todo poeta é um pequeno Deus”.

LVF 2- Quando você começou a se descobrir como poeta? Quais suas primeiras tentações poéticas?

Rubervam Du Nascimento: no início foram os livros bíblicos que me chamaram a atenção. Aliás, único conjunto de livros que ocupava espaço na casa onde vivi a infância e o começo da adolescência. Principalmente os livros de Isaias, Ezequiel, Daniel, Malaquias e Apocalipse que me despertavam uma espécie de ira sagrada ao lê-los. Ficava com um gosto de vinagre apodrecido na boca quando devorava seus versiculos. Gostava de ficar viajando com as imagens que esses livros me traziam. Para tentar compreendê-los decorava capítulo por capítulo e ficava dizendo em voz alta, trancado em meu quarto. Mas os livros que me despertaram para a poesia foram O Luzíadas, que encontrei entre outros livros empoeirados, e pastas e papéis inúteis numa espécie de biblioteca abandonada no prédio do ginásio onde estudava, e um livro de poemas estranhíssimos que me chegou às mãos através de um professor de português chamado Ildegardes: O Guesa Errante. Era adolescente, nessa época, tinha quinze anos e ao invés de ir passear na praça, namorar, ficava em casa lendo os livros da Bíblia, Sousândrade e Camões. Depois desse encontro, comecei a rabiscar alguma coisa que pensava tratar-se de poesia, mas não era, apenas rascunho que foi parar na cesta de lixo, ou no fogo. Gosto de ver meu poema pegar fogo, virar chama e depois cinza. Alguns deles, purificados, voltam aos pedaços em versões posteriores. Outros desaparecem para sempre do meu caderno de memórias. Nessa época escrevi um poema chamado: deslumbramento que uma professora de português elogiou na sala de aula, chamou de poesia. Até hoje guardo cópia, mas jamais será publicado. Embora seja um poema de forma livre, é muito ruim, de linguagem pobre, coisa de iniciante, muito parecido com a maioria do que é veiculado e que abarrota os espaços da internet e que chamam de poesia.

LVF 3- Fale sobre os poetas e a poesia de sua geração e comente um pouco sobre sua participação na coletânea “ponta de lança na praça”?

Rubervam Du Nascimento: mantenho contato com vários autores brasileiros e estrangeiros, principalmente da América Latina. Com esses autores troco além de correspondência, poemas. Dessa forma alguns me pedem autorização para incluírem meus poemas em livros ou para serem editadas em jornais ou blogs. Assim aconteceu com a coletânea: ponta de lança na praça, editada pelo poeta Guido Bilharinho, de Uberaba/MG, na década de 1980, o mesmo que publicava a famosa revista: Dimensão. A linguagem do longo poema incluído na coletânea já indicava inquietações éticas e por que não dizer, estéticas, que somente hoje estão em volga: a nossa sobrevivência, numa sociedade que parece ter esquecido que somos apenas formiguinhas entregues ao mar de águas que a cada virada de estação causa um dilúvio de calamidades, ao invadir a pequena extensão de terra que nos resta para sobreviver, por conta dos maus tratos que cometemos contra a natureza e o ambiente das cidades. Quanto ao poetas de minha geração, gosto de alguns, de outros não, Sem citar nomes, penso que alguns não evoluíram. De qualquer modo, não tenho dúvidas de que se trata de uma geração que é a pedra do sapato dos críticos e estudiosos do assunto. Posso garantir que são mais de meia dúzia os poetas que se firmaram e podem ser considerados bons poetas, alguns com trabalhos editados que verdadeiramente se sustentam como livros dignos de leitura e reflexão.

Demetrios Galvão 4- Que importância tem a poesia na sua vida e no seu cotidiano?

Rubervam Du Nascimento: além do ofício de poeta, exerço no dia a dia outra profissão, que nem sempre me dá folga para o exercício da poesia na hora em que bem entendo, posso dizer que respiro poesia pela manhã, à tarde, à noite e de madrugada.De segunda à sexta e nos fins de semana. Sou um poeta que vive a poesia durante quarenta e oito horas diárias.Não que eu considere tudo que eu vejo como matéria poética. Alguma coisa que a gente encontra em nosso caminho a gente tem que empurrar pro lixo. Não pode ser traduzido por poesia, nem pode terminar em poema. Qualquer tentativa forçada do poeta com material não poético pode danificar o poema e torná-lo objeto escrito imprestável. Posso dizer que o substrato principal dos meus poemas vem do meu olhar atento, mas seletivo do comportamento humano, dos livros, revistas e jornais que leio, das pesquisas e interpretações históricas, sociológicas, antropológicas que faço.

LVF 5- Eu tive o prazer de assistir a um espetáculo seu no Teatro 4 de Setembro “A Profissão dos Peixes”, referente ao seu primeiro livro. Fala da tua relação com o teatro.

Rubervam Du Nascimento: fiz curso de teatro no Rio de Janeiro com o mesmo grupo do Fulvo Stefanini, José Wilker, Rosa Maria Murtinho e outros que hoje são artistas famosos. Vim para o Piauí, tive algumas experiências nesse sentido, mas resolvi parar de fazer teatro. Afinal de contas descobri que escolher esta distanteresina para fazer arte, principalmente, é escolher um limite. Não se pode querer fazer uma porção de coisas ao mesmo tempo, pois se corre o risco de fazer-se tudo mal feito. Andei escrevendo uns contos, algumas peças de teatro, iniciei um romance, mas acabei firmando compromisso apenas com o exercício poético. Preferi a poesia, apenas a poesia, por entender como Torquato Neto que a poesia é a mãe das artes, das arte/manhas e das armas de hoje e de amanhã. O espetáculo poético-musical que chamei de “corpo-a-corpo”, reuniu a espinha dorsal do livro: A Profissão dos Peixes, levado a treze cidades brasileiras, em 1987. De Cruz das Almas/Ba, passando por Belo Horizonte, Rio, São Paulo, capital, Ourinhos/SP, Londrina/PR, Curitiba e por último, o que eu denominei de “Peregrinação Poética”, em Paranaguá/PR, sempre contando com a articulação de pessoas ou grupos de poetas com os quais mantinha contato. Lembro de uma dessas apresentações como um momento inesquecível, tanto pelo clima mágico que se formou no local, cujo teto era uma lua enorme no céu escuro, quanto pela interação do público, praticamente formado por poetas e artistas, com os poemas lidos, no pátio aberto de uma Casa de Cultura em Cruz das Almas, interior da Bahia, onde anteriormente funcionou uma cadeia pública. O pátio serviu no passado para os presos tomarem banho de sol. O Corpo-A-Corpo foi apresentado algumas vezes aqui, Luzilândia, Parnaíba e Picos. Trata-se de uma tentativa de colocar o leitor mais perto da poesia. Apesar de ter plena consciência de que a expressividade do poema não pode confundir-se, nem concorrer com a expressão do teatro, pois são diferentes, colei esse espetáculo ao lançamento da 1ª edição do A Profissão... e obtive resultados impressionantes, em relação à divulgação da poesia e do livro. Como se sabe, toda poesia guarda áreas de silêncio. A encenação dos meus poemas tenta preencher algumas dessas áreas de silêncio, pois existem outras para serem preenchidas pelo leitor disposto a fazê-lo.

LVF 6- Como foi tua passagem pela UFPI, naquele tempo de dias obscuros? Viver a época da ditadura te trouxe problemas?

Rubervam Du Nascimento: entrei para o curso de Direito da UFPI com uma experiência considerável de luta estudantil, adquirida enquanto estudante secundarista. Cheguei a ser eleito em congresso de estudantes para dirigir o Centro Colegial dos Estudantes Piauienses, o CCEP, na década de 1970, época de plena dominação militar, censura, perseguição, tortura física, mental e o que mais de terrível aconteceu naquela época de chumbo aos indivíduos que insistiam em atrapalhar com suas idéias e/ou ações a ordem unida das coisas. Tudo o que se fazia, incluindo a poesia, era uma afronta ao governo que tomou a ferro e fogo as rédeas desse cavalo aparentemente dócil chamado Brasil. Passei no vestibular para direito sem saber que existiam dedos duros nas salas de aulas que sequer se submeteram a concurso algum. Entraram na UFPI pelo teto, ou sob o peso dos coturnos, na cota dos órgãos de repressão, para acompanharem os passos de quem na universidade, questionava o milagre brasileiro do “pra frente Brasil” ou do “ame-o o deixe-o”, que até hoje tem seus reflexos negativos nos destinos deste país. Não entrarei em detalhes sobre as vezes que fui forçado a dar explicações sobre alguma declaração a jornal, rádio, a um xerife de plantão na província, na casa onde hoje funciona uma pousada, na Arlindo Nogueira. Lembro que certa vez fui obrigado a explicar ao cara o que eu queria dizer em um poema publicado no jornal do CCEP que trazia em um dos versos o nome Petrônio. Só que não se tratava do Petrônio Portela, tratava-se do outro, do filósofo. Foi difícil explicar. Aliás, não deu pra convencê-lo. Ele me olhava, riscava um papel e insistia que o Petrônio, era o Portela. Ao final carimbou o poema no jornal e devolveu-me com alguma coisa rabiscada, que até hoje não sei decifrar direito, rabiscou com a intenção de confundir-me, acredito. Nunca descobri o que escreveu.Acho que tinha alguma coisa com censurado. Guardo comigo este e outros poemas meus carimbados pelos censores da PF. Mas nunca fui torturado fisicamente. O que me salvou, penso, foi nunca ter assumido papel de protagonista político partidário. Sempre votei na chamada esquerda, desconfio que a direita continua a existir e tem ganho força ultimamente, mas nunca assinei ficha de partido político algum. Havia umas chapas eleitorais na UFPI constituídas por petistas, outras ligadas ao partido Comunista do Brasil, das quais sempre me neguei a participar, por entender que seguiam cegamente pautas de atividades partidárias que não contemplavam qualquer discussão artística e cultural. Minha luta, tanto como secundarista, quanto universitária era pela arte e pela cultura que os partidos políticos nunca deram o verdadeiro valor que merecem. O que eles querem dos artistas é ajuda para armar e desarmar o circo. Usam os artistas para complementarem seus risos de deboches, pra brincadeiras de mau gosto, pra molecagem. Todo partido político tem uma dificuldade enorme em conviver com tudo que simboliza ou expressa arte e cultura. Não é a toa que os poetas foram expulsos da República, desde Platão. Foram expulsos em razão da arte e da cultura serem rebeldes por natureza, não aceitarem a mesmice, o jogo cínico e desigual do poder. Os defensores da sociedade ideal, planificada, racional, não aceitam o jeito torto dos poetas. Pior, todo partido que atinge o poder vira refém do conservadorismo secular das elites políticas que odeiam cultura. Não tem jeito. Antes de deixar o CCEP criei uma imensa biblioteca com mais de cinco mil livros que hoje não sei onde foram parar, vez que a sede da entidade, na rua 24 de janeiro, onde funcionava a biblioteca, está completamente abandonada. Nos quatro anos e meio que estudei na UFPI participei de passeatas, puxei algumas discussões em favor da cultura na construção de algumas chapas que concorriam aos diretórios setoriais e central, fui presidente de comissão eleitoral, participei da greve de fome, ajudei a reconstruir a UNE, mas foi só.

DG 7- Comente um pouco sobre seu processo de criação e nos diga o que une e o que distancia a poética dos seus três livros (Profissão dos Peixes, Marco Lusbel Desce ao Inferno e Os Cavalos de Dom Rufato)?

Rubervam Du Nascimento: em artigo publicado recentemente na imprensa local, o poeta Salgado Maranhão que eu respeito, tanto como poeta, quanto como ser humano, após a leitura de Os cavalos de dom Ruffato, aponta-me como um migrante da tagarelice espontânea da chamada Poesia Marginal, para o discurso motivado da linguagem. E acrescenta em seu artigo que “poucos perceberam esse rito de passagem que trouxe vigor e amadurecimento ao verso praticado atualmente”. Inclui o livro Os cavalos de Dom Ruffato como um exemplo que bem diferencia os desabafos sentimentais da arte poética na sua duríssima carpintaria. Entendo que esse comentário do Salgado responde a pergunta e dá pistas sobre o que aconteceu com a minha poesia desde os indicadores de renovação presentes na 1ª edição do meu projeto de “vidapalavra” que denominei de A Profissão dos Peixes, editado em 1987, com 2ª edição em 2003, no título e nas janelas do livro Marco Lusbel desce ao inferno, nos desafios postos no Os cavalos de Dom Ruffato, até chegar à densidade estética e substância de linguagem que consegui atingir na 3ª edição, revista e diminuída, do A Profissão...que será editada, ainda este ano, por uma editora de São Paulo, tudo indica a Geração Editorial.

DG 8- Quais seus dispositivos de criação?

Rubervam Du Nascimento: para permanecer poeta, procuro manter no dia a dia uma faca amolada na pedra do meu cais, com uma enorme ponta de fogo, guardada em minha pele, manejada por mim toda vez que me aproximo de algo que me provoca, me assusta, me excita. É com essa faca de luz que corto e recorto o poema, antes e depois de ser colocado no papel, ou na tela do computador. Diferentemente de Shakespeare, poeta inglês, por exemplo, que referencia a maioria de seus poemas em estrelas em órbitas, gosto mais de utilizar a terra, o chão, as águas e o asco podre, azedo ou doce dos indivíduos, em meus poemas. Já disse várias vezes que poesia não é dom. Poesia é bagagem, é esforço contínuo, é compromisso estético que precisa de renovação contínua, para evitar o que eu chamo de “igolatria poética”: comprometimento precário dos poetas apenas esforçados que não vai além do umbigo, que acaba gerando poesia em série como se fosse a coisa mais fácil equilibrar um poema no papel, mas que acham que são bons poetas, entendem que para fazer poesia é necessário apenas inspiração, uma briguinha com alguém que ama, ou odeia, se comportam como os escolhidos por Deus, jamais pelo Diabo, para levar a sua mensagem pelo deserto.

DG 9- Qual sua relação com a literatura do hemisfério sul, existe algum diálogo com o neo-barroco?

Rubervam Du Nascimento: posso dizer que no Piauí, me sinto só na tarefa de dialogar com os poetas sul-americanos. Tenho aproveitado o máximo esses diálogos para a construção da minha poética. Minha linhagem é barroca, venho de Gregório de Matos, Murilo Mendes, Uidobro, Vallejo, Octavio Paz, e outros que poucos aqui na terrinha já leram ou já ouviram, pelo menos, os seus nomes. Aprecio a poesia criativa e persigo a poética da inventividade. Acredito que só essa poesia marca uma época e consegue continuar viva através dos tempos.

DG 10- Como você compreende a relação da poesia com a política? Ou melhor, você acha que a literatura tem uma função política? Comente um pouco sobre isso.

Rubervam Du Nascimento: a única causa que a poesia defende é a sua própria causa. A função da poesia nunca foi e jamais será política, sempre foi e será poética. Falo da política como sempre se praticou no país e no mundo por partidos a reboque de pessoas disfarçadas de bons cidadãos, a rigor, da pior espécie, que se apresentam como agentes responsáveis pela solução de nossos problemas, mas que na prática defendem seus próprios interesses e dos que lhes servem. A definição mais objetiva dessa política está no dicionário. Diz lá que política é a prática ou profissão de conduzir negócios políticos. Podem grifar a palavra: negócios. A Profissão dos Peixes, confesso, não tem nada a ver com isso. A poesia somente se segura como objeto de prazer estético. Desse modo, a poesia mexe e remexe todo o sistema límbico do indivíduo. Não suporta o que não é sangue, o que não pula, nem pulsa. Ameaça o domínio da emoção domada, que nunca explode, escondida em baú de ossos, fechado a sete chaves. A emoção que termina criando a morbidez romântica, o atavismo das paixões embrulhadas em tecidos apodrecidos, espedaçados e que teimamos em remendar. A poesia transita muito bem entre o desequilíbrio e o medo de cair. Sabe conduzir-se pelo fio tênue estendido em cada janela dos nossos dias. Experiência em escadas inseguras por um fio à beira do abismo. Chega e se apossa de tudo que pensamos que é assim, desse jeito e vira tudo pelo avesso. O grande lance da poesia é que ela não existe com o fim de mudar alguma coisa. É um brinquedo perigoso por que intriga o entendimento das coisas. Dar outro nome às coisas que a gente acredita já ter nome. Reforça a cor das coisas que a gente descobre esquecida num canto empoeirado de nossa casa. Pergunto: a beleza existe para mudar o quê? A beleza existe por ser beleza o bastante para ser chamada de beleza. Existe para exaltar o que é belo na palavra beleza e pronto.

DG 11- Na sua percepção, que lugar a poesia tem ocupado no mundo contemporâneo?

Rubervam Du Nascimento: é visível a falta de espaço para a poesia na sociedade do espetáculo ridículo midiático, da mesmice diária, da brincadeira maliciosa, sem qualquer porção lúdica, dos meios de comunicação, todos eles, preocupados apenas em usar os artistas para a justificativa dos anúncios comerciais de produtos que vendem, descaradamente, dentro ou entre um capítulo e outro das novelas e programas de auditório. O que esperar, poetas, de uma sociedade que perdeu o encanto e o direito à rebeldia e vive constantemente sob a ameaça da violência e da tolice repetida até à exaustão? O que fazer numa sociedade em que, diante disso, a chamada intelectualidade de farda e pijama se compromete cada dia mais com a imortalidade dos defuntos e acredita que assim, com seus pontos de vistas mofentos, está contribuindo para alterar o belo quadro da idiotice social?

LVF 12- Você é também um observador e um incentivador da “cena nova” (teu prefácio sobre o meu “Versificando” – ainda na gaveta – ficou melhor que o livro), como é que você vê esse novo cenário da literatura aqui na “terrinha”?

Rubervam Du Nascimento: vejo pouca articulação conjunta. Como não acredito que não se subtrai poesia do nada, penso que não se faz arte sozinho. Fico satisfeito em saber que vocês existem. Desconheço outro coletivo funcionando hoje como o de vocês nesta distanteresina. A poesia precisa ser lida, discutida, remendada. A palavra do outro às vezes salva um poema, ajuda a retirar uma palavra que está ferindo de morte um poema porque foi mal colocada no verso e que o poeta, por uma razão ou outra, sozinho não descobre. Procuro, na medida do possível, acompanhar o que é editado a nível de poesia, por aqui e pelo país. Sempre que viajo à serviço da repartição onde trabalho ou para participar de algum festival literário, passo horas em livrarias e sebos procurando novidades. Confesso que entre um grande número de bobagens, de repente aparece um livro que merece releituras. O Raniere Ribas, vocês o conhecem? Ele é professor da UFPI, tem uma poesia que incomoda, uma poesia consistente. Ele editou há cinco anos, mais ou menos, um livro de título e conteúdo intrigante, Os Cactus de Lakatus e ninguém teve a coragem de escrever alguma coisa sobre o livro. Silenciaram diante da ousadia e da agressividade estética e de linguagem de um poeta que merece ser lido e discutido. Gosto da poesia do Wanderson Lima, do Adriano Lobão, da Carmen Gonzalez. Poetas um tanto jovens, mas com uma poesia que em nada perde para a poesia que se publica por grandes editoras no eixo Rio-São Paulo. Tem um poeta que publicou apenas um livro e é da minha geração, mas que nunca mais ouvi falar em seu nome, o Francisco Sales. Ele editou o livro: Esboços ( paredes de papéis finíssimos) em 1995 e de lá para cá não editou mais. É um bom poeta. Outro dia deparei-me aqui com um livro excelente chamado: Terreiros, de uma poeta que não conheço pessoalmente de nome Keula Araújo e me assustei com os poemas que escreve. Poemas densos, bem construídos. Leio sempre a poesia do Demetrios. Uma poesia urbana, visceral, visionária. O Valadares eu conheço de algum tempo e tem bons poemas. Vocês não sabiam, mas acompanhei de perto o que era editado na Trimeira. Comprava nas bancas de revistas e jornais. Cadê o pessoal que fazia a Trimeira? A Trimeira acabou? Vocêsa anunciaram no terceiro número o fim da revista, não foi? Lembro versos como: mas as vestes que te diziam alguma coisa/ não existem mais, da Lorena Albuquerque, alguma coisa da Renata Flávia, da Lee Flores, do Rodrigo Leite e da Arianne Pirajá que escreve versos inteligentes, de imagens fortes, como: flores constipadas, final do poema: vida bandida, recentemente anexado no blog da academia onírica e da Laís Romero que escreve poemas com achados impressionantes. Parece-me a mais exigente, a mais preocupada em encontrar uma poética particular.

DG 13- Você já cometeu algum pecado cultural?

Rubervam Du Nascimento: pecado cultural? Deixa-me ver. Acho que sim. Mas vou contar um caso que por pouco não me levou a cometer o que seria o maior pecado cultural da minha vida. Um pecado que, caso tivesse se concretizado, não teria como ser perdoado. Seria um baita pecado que, certamente, nenhum rosário de orações expiaria a culpa. Trata-se de um rascunho de livro que trouxe de Coroatá do Maranhão pensava eu, no ponto de ser editado. Queria o livro editado logo que cheguei aqui, em fevereiro de 1972. Escutem o título: rastros de estros. Que diabo é rastro de estro? Me respondam. Um livro horrível, repletos de pensamentos moralistas, cheio de sonetos precários e alguns poemas soltos. Sonetos parecidos com os do J. G. de Araújo Jorge. Já leram? Não precisam ler. O J. G. está morto e com ele foi a poesia que editou em vida. Rastros de Estros era uma mistura de J. G com o Neimar de Barros, o cara do livro: O Deus Negro, que mais parece um livro de auto-ajuda do que de poesia. Foi bastante lido na década de 1960 e 1970. Ele vendeu uma porrada de livros, mas também já morreu e levou com ele a poesia que publicou. Foi toda devorada pelos vermes que se alimentaram de sua carne, dos seus ossos e das folhas adoecidas e inúteis que escreveu.