1- Elio, como a poesia começou a se manifestar no teu corpo? Relata tua iniciação.
Não sei muito bem, quando a poesia começou de verdade. A gente nunca sabe de fato quando ela, a poesia, acontece na nossa vida ou se a gente já nasce com ela ou se alguma coisa fez com que a poesia acontecesse. Sei que dei por mim me sentindo fascinado, encantado e mesmo sentido medo das histórias de “assombrações dos contos orais e narrativas maravilhosas que me contaram na minha infância.
Lembro que quando tinha talvez oito anos escrevia alguma coisa parecido com poema, que lembro até hoje, a partir de uma figurinha de chiclete:
Tucano, tucano
tu ingole um homem?
Ingulo, ingulo até você,
quando você quiser morrer
pode vir,
pode vir,
onde estou eu...
Estranho, não? Quando era menino, eu gostava de ler poesia balançando a rede com uma das minhas irmãs. Depois comecei a recitar poesia na escola, na sala de aula. Aos 17 comecei a recitar meus próprios poemas nos eventos da escola. Aos 18, comecei a publicá-los num jornal semanário de Floriano – Piauí, minha cidade natal.
2- Desse teu início, o que ainda contribui na construção da tua escrita? De onde vem o teu impulso pra escrever?
Desde que publiquei o Canto sem viola, em 1983, eu já me tornara um poeta que escrevia poemas narrativos longos e de memórias da infância. Tinha aquela vontade de perpetuar as pessoas simples, as pessoas comuns da minha infância. Também escrevia sobre meu presente, as minhas experiências pessoais, poesias sociais, poesias eróticas, etc. Acho que o primeiro livro é o prelúdio de muita coisa que a gente faz e como faz nos livros seguintes.
Não sei muito bem de onde vem o impulso. Sei que vem. Antes escrevia até tarde da noite. Virava a noite. Agora escrevo mais poesia de manhã, cedinho.
3- Dos teus livros, o que mais vemos reverberar é O Contra-lei. Em que ocasião tu o escreveu? E em que medida a situação cultural e política que te circundava motivou a feitura dos textos?
O Contra-lei foi publicado em duas edições. A primeira é de 1994, é a reunião de três livros: o poemartelos, o contra-lei e outros metais; a segunda é de 1997, quando acrescentei mais um livro, um quarto livro: Eldorado dos Carajás.
Este livro foi escrito entre 1990 a 1994, quando comecei a fazer minhas performances de rua com a cara pintada, a capa preta, o parangolé da bandeira do Brasil e o megafone pelas ruas de Teresina. Foi na época do governo Collor de Melo, das manifestações de rua, da crise política brasileira; da Guerra do Kuaite, etc. Vivi intensamente todos esses momentos políticos e sociais. Falava poesia na manifestações de rua. Falava poesia com megafone nos pontos estratégicos de Teresina, nas universidades, escolas, praças, bares. Viajei por outras cidades do Piauí e do Brasil, como Brasília, Campo Grande, Fortaleza, Aracaju, São Luís, Floriano, Caxias, etc.
Nesta época me sentia meio sufocado. Escrevia compulsivamente, queria falar meus poemas, mudar o mundo, interferir no mundo. Havia na época havia um baixo astral de extermínio dos meninos de rua pela polícia. Daí foi que veio “Abracadabra” um dos poema que mexia muito com as pessoas; teve o “canibal”; “o contra-lei III;. Na época fiz camisas com poemas, que tiveram uma boa recepção.
O contra-lei foi um poema do aqui-e-agora. Um poema muito próximo da música, de linguagem simples, que agradava e ainda agrada as crianças e os jovens e assustava os adultos.
Muitos dos poemas do Contra-lei foram musicados, quando montei uma banda, primeiro de pop rock e depois de hip hop, esta com o cantor Gomes Brasil, com este nos anos 1995 a 1998.
4- Que impacto as performances do O Contra Lei causou, tendo em vista que tu saia pela cidade com a cara pintada, de capa e megafone...? Berrando uma poesia que não se prendia ao livro e nem a um palco fixo, como as pessoas reagiam?
Quando escrevi O contra-lei, pensei numa forma de dar uma sacudida nas pessoas. Naquele momento me sentia um cavalo. Pintava a cara e aquilo me dava uma força muito grande, era como se eu me sentisse uma antena do mundo falando de energia solar, abominando a corrupção política do Brasil e a violência policial contra as crianças de rua e extraterrestres que pousavam numa nave movida a energia solar pra salvar as crianças perseguida por grupos de extermínio. Foi um momento muito intenso. Algo inexplicável de performances radicais. Alguma coisa de estranho me movia numa velocidade Eu acho que eu estava caminhando para o fim. Não sei...
As pessoas interagiam com as performances. Eu improvisava na hora a partir dos poemas já elaborados. Algumas se sentiam ameaçadas ou agredidas. Chamavam a polícia o caso de uma escola de religiosos do centro de Teresina, quando no roteiro de performances para a fotografia do livro, passei pela Av. Frei Serafim falando poesia no megafone e parei defronte prédios históricos. Houve circunstância em que fui ameaçado de agressão e prometi reagir à agressão. Felizmente ficou apenas na ameaça.
O fato é que a maioria das pessoas gostavam, interagiam, participavam, se identificavam com meus poemas. Eu também falava poema nas rádios, na TV, nos bares, teatros, universidades, estação de metrôs, rodoviária, parques de diversão, igrejas, etc..
5- E como foi a repercussão do O Contra Lei? Faz um paralelo de como ele foi recebido pelo público e por outros poetas...
Fiquei surpreendido com toda repercussão. Eu não tinha idéia de que era capaz a poesia. Levei muitas vaias. Mas fui mais aplaudido do que vaiado. Em Fortaleza, no Bar Woodstock levei uma grande vaia com declamei o poema “O contra-lei falando sobre Deus”; em Caxias, numa festa de forró, também levamos e minha banda de pop a maior vaia quando falei “O contra-lei falando dos políticos, generais...”, conhecida com “O canibal”. Por três vezes, em Brasília e Teresina, uns policiais tentaram me coibir, mas consegui apaziguar a situação.
Quanto aos poetas para mim foi um enigma, mas os poetas, em geral, são muitos solidários uns com os outros. Acho isso muito legal. Talvez porque não somos e tampouco jamais seremos uma espécie em extinção.
O fato é que fazer uma poesia que servisse pra tudo inclusive pra dançar, pra protestar, pra identidade, pra devaneio, pra assunção da minha origem negra, invocar os meus ancestrais, etc. Não sei bem o limite ou deslimite da poesia.
6- Quais os autores de tua preferência? Aqueles usados pra construir teu universo poético.
Foram muitos. Li uma porrada que nem gosto de citar. Fui um leitor compulsivo de poesia. Li os clássicos e meus contemporâneos. Não tenho restrições, quando se trata de poesia. Mas hoje quero me reencontrar com as minhas origens negra e popular, com as narrativas e canções da minha infância. Quando atingir isso plenamente, acho que voltei a mim mesmo, à casa da poesia, à casa dos meus pais, à minha rua, ao meu bairro, à sabedoria do povo e da minha casa, etc.
7- Elio, como tu pensa tua poesia: marginal? étnica? contemporânea? ...ou marcaria aquela última classificação “outros”? Pra ti, essas classificações fazem sentido?
Tudo faz sentido neste mundo, nesta vida. Um poeta precisa andar por vários caminhos. Acreditar na sua poesia, acreditar na sua geração. Pensar que sua poesia é capaz de mudar o mundo, pelo menos enquanto se é jovem. Gostaria de ser sempre esta coisa de ser jovem e antigo. É legal este diálogo. Esta doideira. Sou um capoeirista. Sou graduado do Abadá-Capoeira. Um corda azul. E isso deu um grau a poesia e mais coragem e determinação pra enfrentar a rua e está disposto a testar meus limites e saber dos meus limites. Tudo na poesia é válido, menos morrer pela poesia ou por qualquer outra coisa.
8- Por falar em classificação, diz uma coisa: quais características tu percebe que atravessam a poesia dos autores negros? Em que sentido podemos falar em “poesia negra”?
Esta poesia negra é o grande lance. Mas cada poeta é cada poeta. Esta poesia negra faz a gente descer dentro da gente mesmo, da nossa família, do nosso passado, da nossa infância e nossos parentes, da nossa história, do nosso tempo, da nossa casa, daquela coisa que estava pra desaparecer e a gente entra dentro dela de maneira mais pelas entranhas, mais humanizado, se auto-reconhecendo nas pessoas e nas coisas simples da vida. É um redescobrir da vida e da gente mesmo.
A poesia negra é algo que já estava muito dentro de mim. Do ponto de vista estético, O contra-lei e o Poemartelos têm muito de poesia negra, sobretudo da poesia buscando a música e das narrativas orais, da evocação dos Orixás, sobretudo de Oguem e das vozes das pessoas negras da minha infância, da memória dos meus parentes que cruzam e entrecruzam os versos dos meus poemas.
De modo específico, América Negra seria o livro de poemas negros ou afro-brasileiros de modo mais específico, por tratar de temáticas relacionadas à história, à memória, às utopias, à condição humana dos afrodescendentes. São poemas classificados como afrodescendntes pela crítica dos leitores e críticos dos Cadernos Negros, este principal veículo de editoração e divulgação da Literatura Afro-Brasileira hoje.
9- Qual tua relação com o movimento negro? Como avalia as ações do movimento aqui em Teresina?
Comecei minha militância no Movimento Negro Unificado em 1984, em Brasília. Hoje tenho sido convidado para participar de eventos culturais nacionais e internacionais em cidades como São Paulo, Salvador, Recife, etc. Mas minha maior ligação hoje é com a literatura e a pesquisa literária através de palestras, conferência, organização, coordenação de eventos, publicação de artigos em revistas acadêmicas sobre literatura afrodescendente, publicação de poemas nos Cadernos Negros, além de orientações de pesquisas para alunos de graduação e mestrado na UESPI e na UFPI, como também projetos de pesquisa de literatura e culturas negras.
10 - Elio, o que tem a dizer sobre as cotas para negros nas universidades?
Isto é uma questão de humanidade, de reconhecimento da dívida histórica que o Brasil tem para com os descendentes de africanos ou negros brasileiros. Nada mais é irracional do que negar esta obrigação. Sou a favor. Inclusive faço parte da Comissão da UESPI que instituiu cotas para negros nessa Universidade. Escrevi um dos textos que deu sustentação à aprovação de 15% dos 30% de cotas para a escola pública.Quebrei o pau. Felizmente os representantes do Legislativo do Piauí foram a favor. Isso foi um grande avanço, embora poucas pessoas do Piauí se toquem para isso.
11- Falam muito sobre a Roda de Poesia e Tambores: o começo, as dificuldades, que momento te marcou positivamente...
Quando vi aquela molecada falando poesia. Escrevendo cada dia, cada roda de poesia novos poemas para participar dos concursos de poesia falada e escrita... Aquele entusiasmo da nova geração de poetas se encontrando com gerações posteriores, acadêmicos. Quando vi surgir novos poetas que aprendiam com os mais experientes e esses jovens criando uma atmosfera de ânimo e criatividade aos veteranos. O contato dos jovens com os mais experientes foi muito salutar. Senti que dali, na Roda de Poesia & Tambores, iria surgir muita gente boa, que iria fortalecer a poesia do Piauí e fortalecer a poesia, cria novas perspectivas na poesia de hoje. Estávamos fomentando a criação de outros grupos, de músicos-poetas que formaram ou passaram a integrar bandas de música pop, etc.
12- Na tua opinião, que ressonâncias a Roda de Poesia e Tambores produz no cenário cultural daqui? Isso porque com a criação da Roda, a poesia passou a ocupar, em Teresina, um espaço público e aberto a todos aqueles que queiram falar e divulgar sua poesia. Como tu percebe a aproximação dos poetas, “novos” e “antigos”, a partir desse evento mensal que é ponto de encontro da poesia em nossa cidade?
Antes de tudo, precisamos retomar e continuar incentivando os poetas jovens e fomentando esse diálogo entre diferentes gerações. Os dois ganham muito com isso. Acho que as coisas nunca estão acabadas ou perfeitas, que é sempre possível ou necessário recomeçar. Refazer caminhos, fazer travessias, ultrapassar fronteiras. Penso que tudo está por fazer, pelo meio do caminho. Isso me tortura muito. É preciso que surjam novas pessoas pra dar continuidade a projetos como esse. Inclusive vocês estão fazendo isso. Vocês da Tarja. É isso mesmo. É preciso que a rapaziada nova e os veteranos estejam juntos para um aprender com o outro. A poesia é um aprender constante. Um renovar sem rumos, um revitalizar de corações e de olhares para o mundo e para dentro da gente mesmo. O Piauí é um Estado pobre e tornará tanto mais pobre à medida em que não der importância a seus escritores, poetas e artistas. Do ponto de vista da valoração da cultura literária dos jovens, sobretudo em relação às políticas públicas, o Piauí é uma pobreza sem fim, de descaso à política cultural voltada para os jovens. Já disse isso muitas vezes. Já estou de saco-cheio com isso. Quando chega nesta época da politicagem, desta sujeira que virou profissão, tudo deixa de existir. Não quero dizer que todos políticos sejam corruptos. Não bem isso. Mas a grande maioria está mais afim de se dá bem juntamente com os familiares, parentes. Parece que estamos descendo para um lugar chamado - o fogo dos infernos. Os recursos dos projetos já aprovados são amarrados e somos impedidos de honrar os nossos compromissos.
Por falar em ressonâncias, a Roda de Poesia & Tambores completa dez anos em outubro e lançaremos a Revista Literária da RODA DE POESIA & TAMBORES, Nº 2, em dezembro próximo.
13 - Voltando à tua poesia: em entrevista à revista Amálgama, em 2002, tu disse “eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira... música de vários tipos”. Ainda é assim? Tem algum caso em que algo da música que ouviu foi aproveitado na tua escrita? Cita alguns casos específicos.
Gosto de escrever ouvindo música sobretudo jazz. Este reencontro com a música e as narrativas orais me reaproxima dos meus ancestrais negros, da minha infância, quando meu pai contava histórias pra mim, minhas tias me embalavam cantando canções de tempos imemoráveis, quando ouvia os contos maravilhosos contados por pessoas mais velhas na porta da minha casa, na Rua do Ouro, em Floriano, nas noites de lua ou nas noites escuras, sentados na calçada da minha casa. Eu sempre fui obcecado por essas narrativas e mais tarde, na adolescência, na juventude e até hoje esta minha obsessão foi transferida para os livros.
14- O que dizem a teu respeito que te deixa chateado?
Sabe, eu nem sei ou nunca me preocupei com o que dizem de mi. Nesse sentido, sou meio distraído.
15- Elio, tu já cometeu algum pecado cultural?
Eu acho que não, porque não sei que pecado é esse. Não entendo dessas coisas. Não acredito em pecados. De pecado só ouvi falar dos Sete pecados capitais.
16- E ainda no âmbito da cultura: que mentira tu gostaria que fosse verdade?
Que toda pessoa pudesse comprar livros e todos poetas pudessem publicar seus livros na hora que lhe desse na teia.
AXÉ! Um beijão e muita poesia para todos!
Pra vocês da Tarja.