quinta-feira, 11 de novembro de 2010

a carta ao jovem poeta


A carta amarelecida guardada com preferência inclusive à revelia de livros e tratados, era um sinal daquele tempo... Uma espécie de ponte para outro lugar e para outro tempo... Cotidianamente, com calma e cautela, ele revirava o velho baú onde a carta estava jogada – mas por que no baú? A resposta era simples, porque ali era o lugar, desde menino, que guardava todos os tesouros descobertos: as jóias da coroa, lentilhas, uvas-passas, pólen, sinetes, guizos de bufões, selos, armas emperradas, cadeados oxidados, lanternas, ostras, redes de pesca, quadros de Goya, frascos de perfumes, odores de anjos, peles de cobras e, mais ao canto, protegido por uma fina tela esgarçada, assomos e gostos de virações marinhas... A carta estava lá... Para abri-la, há vinte e cinco anos o gesto era o mesmo: rasgava no fundo do olho uma fenda por onde escorria uma lágrima dourada... Depois, cheirava delicadamente o papel azul, lia ternamente, seguindo a leitura com a ponta do dedo... Após a leitura, um poema lancinante nascia do fundo abissal daquelas palavras... Ao fim e ao cabo, assinava: Raine Maria Rilke... E o poema e a carta, num mesmo som e num mesmo embalo, pareciam cada uma parte do outro, como o sal do mar, a areia do deserto...

Francisco Denis Melo (colaborador, Sobral-CE)

Um comentário:

  1. É assim que eu me sinto ao abrir meus tesouros guardados, minhas cartas de um tempo bom...

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