Bestiário é um tipo de literatura descritiva do mundo animal, muito comum nos monastérios da baixa Idade Média, e devidamente acompanhados de mensagens moralizadoras. Nesses catálogos manuscritos, os monges reuniam informações sobre animais reais e fantásticos, incluindo seu aspecto, habitat e dieta alimentar. Metaforicamente, podemos imaginar um labirinto de seres extravagantes circunscritos às páginas milenares de seus livros.
Avançando até o século XX, sabe-se que o escritor argentino Jorge Luis Borges chegou a imaginar o Paraíso como sendo uma espécie de biblioteca. E se assim for, o que lhe aguardava em um outro plano não iria destoar de sua vivência mundana, imerso numa profusão de leituras e uma ânsia compulsiva pelos mais distantes caminhos que a imaginação literária e sua tradição pudessem alcançar. Permanecer cego em meio à sua grande paixão, os livros, pareceria ser sua maldição, ou, quem sabe, seu labirinto; afinal, é uma imagem bem mais recorrente na obra de Borges. Além do labirinto, permeiam sua produção as narrativas fantásticas, os elementos míticos, o mergulho no tempo imemorial. Muito justo que o renomado escritor argentino resolvesse acompanhar seu passeio pela tradição de escritos insólitos com a construção de uma curiosa reunião de verbetes intitulada O livro dos seres imaginários, [Tradução de Heloisa Jahn, Companhia das Letras, São Paulo, 2007], mais um volume a completar a indispensável coleção Biblioteca Borges, tendo sua edição no Brasil coordenada por Davi Arrigucci Jr., Heloisa Jahn, Jorge Schwartz e Maria Emília Bender, e que já lançara, dentre outros, as obras-primas Ficções e O Aleph.
Se há quem lamente a imersão visceral da prosa brasileira num realismo constante e cru, e quando escapa dessas amarras caí em foclorismo e regionalismo tacanhos, talvez seja oportuno assimilar as lições desse nobre argentino. Assim, a Biblioteca Borges poderia ser um norte, e O livro dos seres imaginários um bom aperitivo. Editado originalmente em 1957, sob o título Manual de zoologia fantástica, ampliado nas edições de 1967 e 1969, recebendo também seu título definitivo, sob o qual é atualmente publicado. Mais que mítico, o universo dos seres imaginários catalogados por Borges e Margarita Guerrero nos parece lúdico. Com certeza, a composição desse livro foi para o escritor um interessante momento de descontração, mas nem por isso deixou de ser feito com o compromisso estético-literário que lhe é inerente. No prólogo de 1967, Borges afirmara que “como todas as miscelâneas, como os inesgotáveis volumes de Robert Burton, de Fraser ou de Plínio, O livro dos seres imaginários não foi escrito para uma leitura consecutiva. Gostaríamos que os curiosos o frequentassem como quem brinca com as formas cambiantes reveladas por um caleidoscópio.”
É certo que, muitas vezes, o mito é tão importante quanto a realidade, e muitas vezes explicam o ser humano tanto (ou mais) que seus atos mais racionalistas. A história de existência humana também é a história de seus mitos, metáforas e simbolismos, é propriamente o registro da experiência dos homens diante de um vasto mundo que nem seus sentidos nem sua ciência puderam compreender em sua extensão. E a partir dessa margem, o mítico, o fantasioso e o imaginário abrem suas asas de fênix, de grifo, de harpia ou do que quer que seja sobrenatural. E, nesse mitológico voo, Borges sempre nos brinda com sua peculiar abordagem dos paralelismos da invenção humana, como se vê neste trecho: “A idéia de uma casa construída para que as pessoas se percam talvez seja mais estranha que a de um homem com cabeça de touro, mas as duas se reforçam, e a imagem do labirinto combina com a imagem do Minotauro. Fica bem que no centro de uma casa monstruosa exista um habitante monstruoso.” (p. 145)
Na verdade, não importa se existem ou não os diversos seres que desfilam pelos verbetes que Borges e Margarita catalogaram do Alcorão (os djins), da cultura hindu, do folclore americano (o estranho hidebehind, habitante das florestas de Wisconsin e Minnesota, que jamais chegou a ser visto, pois se posiciona sempre atrás das pessoas, fora de seu campo de visão), além, é claro, dos inevitáveis dragões, seja o ocidental ou o chinês, dentre diversos outros mistérios da história cultural da humanidade. As verdades e as certezas estão bem aquém da dúbia vastidão do imaginário de séculos e séculos. Bem adequado para quem declarou “dediquei minha vida inteira à literatura, só posso lhes oferecer minhas dúvidas.” E a dúvida, certamente, é bem mais vasta que a certeza, e traduz bem melhor a frágil realidade dos mortais, talvez o maior de todos os mitos.
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Adriano Lobão Aragão (colaborador)
Ágora da Taba - adrianolobão.blogspot.com
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